G.H. de 28 anos, passou por uma fase complicada nos últimos dois anos. Adquiriu crises agudas de ansiedade, estresse, burnout e uma depressão que em nada tinha a ver com a sua personalidade alegre, entusiasmada, cheia de planos para o futuro. “Quando entrei na empresa, uma das grandes na área de T.I. em São Paulo, eu não imaginava que pudesse enfrentar tantos obstáculos com uma pessoa que se tornaria meu chefe e que se apresentava como minha amiga. Obcecado por mim, ele alimentou ilusões que eu nunca encorajei sobre nós dois. Se irritava com frequência quando eu dizia que éramos apenas colegas de trabalho e fora da empresa, amigos. Eu sentia que a minha postura, contudo, o deixava ainda mais obcecado, em vez de entender que a palavra ‘não’, quer dizer ‘não’. E insatisfeito com isso, ele tentava me retaliar dentro da empresa, usando o cargo de chefe. Eu chorava todos os dias, de soluçar, e tremia com medo do que podia acontecer. Sabia que em algum momento, podia acabar na rua, precisando do emprego. As abordagens foram inúmeras a ponto de me deixar desconfortável, mas, como se não bastasse, ele ainda usou o cargo para tentar impor a sua vontade e agendar algum programa comigo, algo que também não ocorreu. Nisso, eu fiquei para trás, recebendo críticas, cobranças e uma pressão ainda maior no trabalho, o que causou o meu afastamento por ‘burnout’. Quando voltei, ainda nervosa após longos meses, soube que ele tinha aceitado um cargo em outra empresa, mas deixou um rastro tão tóxico que ainda hoje custa a minha saúde mental e física. Hoje, procuro ansiosa uma outra oportunidade, com medo de que ele possa retornar para essa empresa”.
O.P. de 48 anos, recém viúva, viveu uma situação parecida no seu trabalho nos meses de março e abril deste ano. Na área de cuidados estéticos, no hospital em que trabalha, no centro de São Paulo, certo dia recebeu um paciente que também não lhe deu paz: “Ele se apresentou, educadamente, e eu, de forma cortês, comecei a anamnese com ele, no que ele ficou parado, apenas me olhando e me constrangendo, sem responder as perguntas que eu fazia. Eu insistia e ele parecia estar tendo um ‘derrame’, com os olhos arregalados para mim. Quando percebi que algo estava errado e me levantei da cadeira, ele levantou-se e vindo em minha direção, disse que queria sair comigo a qualquer custo, me encurralando. Eu fiquei furiosa, nervosa, com medo, falei um monte de verdades para aquele infeliz e levei imediatamente o caso à direção do Hospital, que prontamente o advertiu. Contudo, aquilo foi só o começo. A dificuldade de entender que ‘não’ é ‘não’, chega a ser absurda. Foi um festival de flores, presentes, chocolates, bilhetinhos, todos os dias esse homem ia ao hospital sem necessidade, porque queria esbarrar comigo. E ficava lá o dia todo, me cercando. Uma vez, tomando café na lanchonete, ele se aproximou, de surpresa. Eu calmamente, segurando o nervoso e o medo, expliquei educadamente a ele que eu nada queria com ele, que ele, por favor, me respeitasse. Ele escutou calmamente e me respondeu: ‘Eu sempre tenho o que quero. Não adianta você tentar me escapar, porque você vai ser minha’. Falando calmamente, um perfeito ‘sociopata’. Eu gelei. Ele saiu e quando fui pagar, tremendo, descobri que ele já havia pago minha conta”.
E não acabou por aí, segundo O.P, que tem uma filha de 25 anos, o homem tentou algo pior: “Naquela semana, eu fui ao estacionamento e quando cheguei no meu carro, havia um outro de luxo, emparelhado. Quando peguei a minha chave na bolsa, ele saiu daquele carro, veio em minha direção tentando segurar meus braços e dizendo para eu entrar no carro dele, que era para obedecê-lo porque ‘agora, eu ia ver quem era ele’. Eu comecei a berrar no estacionamento, consegui me desvencilhar dele, voltei para o hospital, com ele correndo atrás de mim. Minha sorte foi que os seguranças o renderam e de lá fomos todos para a Delegacia, a qual registrei o Boletim de Ocorrência. Ele saiu da DP rindo, dizendo que aquilo só não bastava. Graças a Deus ele desapareceu, por hora, mas até hoje estou com medo do que ele possa tentar novamente”.
O que esses casos têm em comum, além da covardia dos criminosos? É simples: a certeza da impunidade. É o que pensam 76% das mulheres e 67% dos homens ouvidos na pesquisa divulgada pelo Instituto Patrícia Galvão.
“O que impede a condenação dos autores de violência é uma visão retrógrada de todo sistema de segurança pública. E uma parte do sistema de justiça ainda não se conscientizou da gravidade da violência sexual para a sociedade brasileira”, avalia a diretora executiva do Instituto Patrícia Galvão, Jacira Melo. Para ela, não punir a violência sexual significa deixar o Brasil no atraso.
Não precisa ir muito longe: segundo dados da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo, até o momento, foram registrados 3.862 casos de estupro, sendo que destes, 2.932 são casos com vulneráveis [menores de idade].
Infância destruída
V.A, 50 anos, viveu um trauma terrível na infância e com muito custo, transformou a dor em força interior ao longo da vida: “Eu tinha 7 para 8, 9 anos, quando nós fomos morar no fundo de uma fábrica, que era da minha família, e nesse fundo era um quarto, sala, cozinha, banheiro e nessa época, nós passávamos necessidades. Mesmo com a fábrica, a vida era muito batalhada e recebíamos, às vezes, cestas básicas para nos alimentar. Somos quatro filhos e eu sou a mais nova. Tem um dos meus irmãos, que é totalmente psicopático e não tem limites para nada. Vivíamos sempre com a ilusão de que a vida seria melhor e isso a minha mãe sempre dizia, sempre dizia pra gente. Pra você ter uma ideia, na época, minha mãe comia em pé, porque quando percebia que terminava a comida no prato de um filho e ele ia buscar, ela tirava do prato dela e dava para a gente. Então, era uma época de muita batalha, mas para esse safado desse irmão, não existia isso e não existe até hoje. Ele só olha para o umbigo dele. Então, um determinado momento que a minha mãe e meu pai precisavam sair, eu ficava em casa com o meu terceiro irmão, que nunca fez nada para me defender, e outro irmão safado que é o segundo, e o que ele fazia? Ele trouxe amigos para dentro de casa e me parece que ele cobrou por isso. E aí ele dizia para mim ficar escondida no guarda-roupa, né? ‘Que a gente vai brincar…’ E aí, nesse momento, ele falava: ‘Ah, agora tá na hora de você tirar a calcinha’. E eu tirava, porque sempre fui ingênua, minha mãe não me ensinava nada e também nunca me defendeu. E na hora de tirar a calcinha, ele escurecia o quarto, me punha na cama, apoiava as pernas naquela, naquela parte final da cama e ali, abria as minhas pernas e os amigos ficavam olhando, tocando e vendo a minha genitália.”
Segundo V.A. o irmão abusador e os amigos não realizavam a penetração, mas abusavam como podiam: “Eles faziam comentários, riam, não tentavam mais do que isso, mas não precisava e aquilo tudo me assustava. E quando ele via que eu estava assustada, ele dizia no meu ouvido: ‘eu vou contar para mãe o que você tá fazendo. Você vai ver o quanto você vai apanhar’. Então, ao mesmo tempo que eu via que aquilo era errado, eu não tinha a noção de que eu podia me libertar daquilo, porque a minha mãe criava a gente sempre em cima de um cabresto muito forte, né? E o meu pai dizia: ‘Você é a última a falar e a primeira a calar a boca’. Então, eu ficava coagida neste momento e o outro irmão não fazia nada, nada, nada. E esse irmão que me violentava, dizia que ia bater no outro irmão, se caso ele contasse aquilo para alguém. Bom, isso eu não lembro quantas vezes aconteceu, só sei que foi mais de uma vez, sim, até que eu desenvolvi uma nefrite. Nesse dia da nefrite, eu lembro que eu fiquei toda inchada e minha mãe me mandou para casa de uma tia e eu fiquei morando dois anos com essa tia, em tratamento, porque a nefrite precisa de repouso e eu não podia levantar, tomando duas injeções diárias, né? E sem esforço, sem nada e eu ficava lá, a gente não tinha brinquedo, não tinha nada e aí é outra coisa da vida que eu passei a viver: a exclusão.”
Com o tempo, V.A. conta que a vida melhorou mas até hoje ninguém fala sobre isso e o irmão, impune, continua aprontando: “Depois, quando tive alta, eu fui morar numa outra tia, na Penha, onde eu fiz o primeiro ano na Escola Padre Antão, e aí, foi muito feliz a minha estadia lá, até os primeiros seis meses, porque uma prima ficou com muito ciúmes da atenção que eu recebia lá. Contudo, mesmo com esse ciúmes e algumas atitudes dela, aquilo para mim não importava, porque ali eu tive mais ou menos um ano, um ano e pouco de sossego e alegria. Quando saí do Padre Antão, aos 10 anos, a minha mãe já tinha melhorado um pouco a situação financeira e então já tinha mudado de endereço. Fomos todos para uma casa melhor e a vida, então, progrediu. Só que em momento algum, jamais, foi-se falado ou tocado nesse assunto, em todos estes anos, e eu acredito que a minha mãe sabia e ela protegia muito esse irmão, porque ela dizia que ele era muito parecido em fisionomia com meu pai. Eu me casei, me graduei e até hoje, esse irmão apronta e quer destruir a minha relação com meu marido. É um monstro em carne e osso. Para nossa sorte, meu marido é muito bem relacionado, porque senão, acabaria preso e separado de mim. É ruim falar sobre isso, eu acho que essa é a terceira vez que eu tô comentando, as outras duas foram em terapia, mas é a terceira vez que eu tô comentando para quem sabe, poder ajudar algumas pessoas que vivenciam dor semelhante, a buscarem ajuda. Quem sabe não transformamos toda essa dor em força, como ocorreu comigo?”, concluiu emocionada.
Agressões e beliscões
H.J, de 68 anos, viúva, viveu 20 anos casada, teve um filho mas vivia escondendo as marcas de tapas e beliscões que levava em casa do marido: “Ele tinha momentos em que era homem bom, carinhoso, e noutros virava um bicho. Ele descia beliscão nos meus braços, nas minhas coxas, puxava meu cabelo, descia tapas na minha cabeça, isso caso o café esfriasse um pouco, o almoço atrasasse, eu demorasse mais que o esperado no mercado, a roupa dele ficasse suja, ai de mim se ele me visse na rua conversando com outro amigo ou vizinho. Eu era a antipática da rua, por culpa dele, enquanto ele era o ‘senhor simpatia’ mas ninguém desconfiava do que eu vivia. Eu tinha muito medo”.
H.J. casou-se com um príncipe que virou um sapo. Segundo ela: “Ele mudou da água pro vinho, no instante em que casamos. Eu passei a ser ‘dona de casa’, era secretária antes disso, fui vendedora, era comunicativa, eu sonhava em fazer faculdade, fui a primeira da escola, sempre. Queria estudar Direito, mas, quando ele soube dos meus planos, a princípio, disse que tudo bem, mas, assim que casou, eu não podia nem pôr o lixo na rua direito. Na cama, o que no começo era paixão, pra mim passou a ser tortura. Era só a satisfação dele que contava, não a minha. Eu virei um objeto. Ele, com a menor irritação, me xingava e se estivesse muito mau humorado, me batia de forma que as marcas ninguém visse. Nem meu filho notava. Foram anos muito ruins, até que meu filho, por conta própria, percebeu muitas coisas erradas, e num dia em que eu desabafei com ele, chorando muito, ele me forçou a ir morar com ele noutra cidade onde estudava. Meu marido me ameaçou que ia me buscar a força, mas nunca foi, e meu filho dizia, que ele nem se atreveria a isso. Ele tinha razão, até que o infeliz teve um infarto fulminante.”
Por que é tão difícil pedir ajuda?
Segundo a psicóloga e teraputa sexual, Elisa Rodrigues, o medo paralisa a vítima: “As vítimas de personalidade narcisista com psicopatia mobilizadora diversas, são pessoas que se submetem a essas situações por vários motivos, desde situações vividas na infância e que causaram traumas como violência verbal, física ou psicológica, à locais onde necessitam estar como trabalho, família ou casamento. São relações que, por vários motivos, as vítimas não conseguem se libertar. E não conseguem, porque quem as coage, vê essa possibilidade do outro que permite a submissão. E aí a vítima fica sem forças para bater de frente e quando enfrenta ou tenta sair dessas situações, é oprimida por gestos, agressões, ameaças que a paralisa“.
Segundo a psicóloga, a vítima muitas vezes, por já ter sofrido esses traumas na infância, encara a situação como se fosse ‘normal’ permitindo sua recorrência: “Porque é uma sensação habitual, a qual a vítima viveu isso, com a família ou em algum momento da vida, e sendo-lhe familiar, não importa o sofrimento, é algo que ela conhece, então, a vítima acaba ‘caminhando’ pela situação até que como forma de libertação, resolve se afastar do agressor e procurar tratamento psicoterápico ou psiquiátrico, porque a situação pode levar a uma depressão mobilizadora além de somatizações como mal-estar, falta de habilidade para lidar com social, a depressão. Já nessa fase, se traduz a tristeza profunda, né, a força para lutar contra isso existe dentro da pessoa, mas muitas vezes a vítima é tão coagida que a falta de coragem se faz presente e o agressor vendo essa possibilidade, faz com que essas situações sejam mais exacerbadas, porque é nessa hora que ele pode agir”.
Diferença entre narcisismo, psicopatia e sociopatia
Segundo a psicóloga e terapeuta sexual, Elisa Rodrigues, existem três tipos característicos de indivíduos abusadores e assediadores: narcisistas, psicopatas e sociopatas: “Em resumo, enquanto os três compartilham traços como falta de empatia e manipulação, as diferenças em suas motivações e respostas emocionais os distinguem. Os sociopatas agem impulsivamente, os psicopatas são frios e calculistas, e os narcisistas são movidos por um senso inflado de auto importância e necessidade de admiração.”
Segundo ela: “O psicopata não sente emoção. Para ele, tanto faz, porém, ele tem uma leitura maravilhosa do outro e entra por esses caminhos para conseguir cativar essas pessoas e manipulá-las com a agressão dele. Ele é envolvente de várias formas, então, o psicopata aumenta os elogios, diz que o outro é tão importante na vida dele que sem ele não se vive. E nessas situações, a parte coagida, se sente presa ao indivíduo, até que se rebele. Aí, surgem as brigas, as agressões e como o psicopata não tem sentimentos, para ele trancafiá-la e deixá-la com fome, tanto faz, como tanto fez. Por isso, o jeito que o psicopata encontra é deixar sempre a vítima com medo”.
A psicóloga continua: “Por sua vez, os sociopatas agem por impulsividade e falta de controle. Podem ser impulsivos, irresponsáveis, desconsiderar as normas sociais e serem agressivos, ao contrário dos psicopatas que desejam ter a imagem de “boa pessoa”. Podem ter mudanças bruscas de humor, não possuem remorso e nenhuma empatia pelo outro. Se um agrada para ter, o outro, toma e pouco se importa em agradar”.
“Os narcisistas são um dos mais comuns, eles buscam a atenção e admiração dos outros, podem ser manipuladores, mas também podem ser emocionalmente reativos e vulneráveis à crítica. Eles podem ter empatia limitada, mas se preocupam mais com a sua própria imagem e necessidades. Podem sentir remorso, mas só se as suas ações prejudicarem a sua autoimagem. São emocionalmente reativos, especialmente à crítica, e buscam validação para proteger sua autoimagem”, explica a dra. Elisa.
Procure ajuda
A Delegada de plantão na 52ª Delegacia da Mulher, localizada no Tatuapé, dra. Rosangela, em conversa com este repórter, afirma: “É preciso que as mulheres reajam e denunciem. A denúncia é importante. Se ligarem para o 190, a viatura mais próxima vai ao local e prende na hora o indivíduo. E se houver agressão, vai pela Maria da Penha. É importante porque o criminoso só age na certeza da impunidade. Eles usam o medo da vítima como escudo. E quando outras mulheres percebem quem é o denunciado, ganham coragem para também registrarem suas queixas, o que aumenta as chances de condenação. Uma outra atitude importante, é dar prosseguimento ao caso, solicitando uma medida protetiva. Com isso, o B.O. ganha força, pois o caso se torna um processo na Justiça e a vítima ganha muito mais chances de segurança e proteção contra o indivíduo”, concluiu.
A Dra. Elisa também aponta alguns caminhos: “Nessas horas, as vítimas precisam do apoio de alguns amigos, familiares, e claro, ajuda psicológica, psiquiátrica, porque é preciso se afastar do agressor e reforçar sua própria força. E além dessa ajuda, também é preciso auxílio da Lei, procurando uma delegacia, uma força policial, um(a) delegado(a), e ter pensamentos e atitudes positivas. Não se entregar ao medo, promover essa mudança, buscando até mesmo grupos de apoio, igrejas. Mesmo homens que sofrem agressões, também devem buscar ajuda para sair dessa situação. Ninguém pode sofrer sendo manipulado pelo outro. Isso não é vida. O início da cura, é quando a pessoa percebe que não está só, sempre haverá alguém disposto a ajudar, só não se pode perder a fé e desistir de si mesma(o), pois é isso que o agressor tanto deseja”, conclui.
Se você é vítima de abuso, violência ou assédio sexual, envie seu relato e pedido de ajuda para contato@conexaopaulistana.com.br e redacao@spjornal.com.br com assunto “RECEITA” e no que pudermos te ajudar, nossa redação está à disposição. Conte com a gente, com a nossa discrição e total silêncio quanto à sua identidade. Ninguém vai lhe descobrir, o que queremos é apenas te ajudar a se libertar.
Reportagem: Fernando Aires. Foto: Divulgação.
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